Friday, June 29, 2007

Virada social ou ilusão efêmera?

Texto e fotos por Caroline Valente

Durante 81 dias, a tropa de choque realizou a "Operação Saturação" no Jd. Elisa Maria, região da Brasilândia. A polícia saiu dando lugar ao "trabalho social". “Nunca se fez nada parecido e nós estamos aqui inaugurando uma nova modalidade de enfrentamento da questão da violência em São Paulo. É o trabalho de segurança, que é indispensável, junto com o trabalho social. Por isso, chamamos de Virada Social”, afirmou o governador José Serra.

Foi um frenesi relâmpago, com ações sociais para crianças e adultos - durante dois dias. Depois, as ações serão as de construir uma escola e revitalizar algumas praças e calçadas. "De que adianta? A polícia vai embora e nossa favela volta ao normal", lamenta uma moradora que observa a partida do helicóptero do governador. E voltar ao normal significa volta da barbárie, das chacinas (no local aconteceu a maior chacina em São Paulo de 2007), das crianças servindo ao tráfego.


“É o Estado ocupando seu lugar na comunidade”, afirma Rogério Amato, Secretário Estadual de Assistência e Desenvolvimento Social. Pena que ocupar por alguns dias não resolve o "pequeno" problema em que vivem mais de 247 mil "cidadãos" (entre aspas porque cidadãos, no sentido pleno da palavra, têm direitos permanentes dentro da sociedade. E não de viver à margem dela).


































Wednesday, June 27, 2007

O pensador das letras sem-teto



“Cansado de ser pessoa burra, analfabeta, cega e tapada”, um Severino sai do nordeste para difundir o conhecimento em movimento social de São Paulo


Caroline Valente

Anos 50, era de um Brasil desenvolvimentista. Os carros chegavam, e como tapetes vermelhos, estradas e mais estradas eram abertas para recebê-los, de norte a sul. Era um tempo de otimismo, crescente industrialização. Promessa de fazer o Brasil crescer 50 anos em 5, slogan dos anos JK. Mas como o Brasil sempre foi o Brasil dos contrastes, do império e da escravidão, dos sem-terra e dos latifúndios, do ouro, do diamante e da fome, naquele tempo não poderia ser diferente. Ao mesmo tempo em que girava a engrenagem do progresso, lá no sertão do nordeste continuava a rotina da morte e vida Severina: dos retirantes, da seca e da fome. E entre tantos Severinos, filhos da terra, um seria transportado, como que de dentro do livro de Melo Neto, para outra história de livro- e sobre livros.

O meu nome é Severino
Este Severino, de sobrenome Manoel de Souza, sertanejo pernambucano nascido na abertura da “década do progresso”, trabalhou desde menino, o que o impediu de visitar a escola. Um dia, se perdeu nas redondezas de Recife, e tamanha foi a dificuldade em retornar a sua casa - já que não podia compreender as letras e achar um caminho de volta - que, quando enfim encontrou seu rumo, já com vinte e poucos anos, resolveu que por bem iria desviá-lo. Avisou ao tio que deixaria de ser pessoa pobre das letras, e foi buscá-las numa cartilha de bê-á-bá. Estudava a qualquer momento de folga, e enquanto trabalhava, deixava a cartilha entre sua cabeça e seu chapéu de lampião, “pra mode as letras entrarem na cabeça”. E elas foram povoando sua cabeça e saindo no traçado de seu nome Severino, que escrevia em tudo quanto era lugar. Desde então, Severino tomou posse das letras, ou elas é que tomaram posse de Severino, mas não era justo guardar o conhecimento do alfabeto só para si: foi quando começou a alfabetizar. Tinha vinte e seis alunos, um para cada letra do abecedário. E era só o começo da saga das letras de Severino, que mais tarde salvaria da guilhotina nada mais nada menos que Machado de Assis.

“O conhecimento que era só meu, passei pra muita gente”, conta. Mais de 200 pernambucanos aprenderam com Severino a assinar nome e compreender o que diziam placas e livros, até que o ilustre professor, acompanhando a história de muitos nordestinos, veio para São Paulo. Mas ele não corria pela mesma esperança de emprego na metrópole, e sim atrás de sua família, essa sim em busca de melhores condições de vida e trabalho. Aqui chegando, Severino trabalhou muito na construção civil. Mexia com eletricidade. Em São Paulo, ele estava prestes a comprar sua casa própria quando despencou de um andaime, 9 metros abaixo. Perdeu saúde, por pouco não levaram-no a vida. Gastou suas economias, já que não podia trabalhar, e o sonho de ter casa se esvaiu. Aqui, Severino viu a mesma lógica de sua terra natal: muitos latifúndios, e muitos sem ter um teto. Juntou-se a outros tantos severinos, integrantes do MSTC (Movimento Sem-Teto do Centro) na esperança de uma causa nobre: a da habitação. O movimento questiona, segundo eles próprios “a lógica perversa das metrópoles brasileiras”, onde “sobram terras e habitações, e falta moradia”.

Ocupar, resistir, construir
Em novembro de 2002, Severino e mais centenas de famílias realizaram uma ocupação pacifica de um prédio na zona central de São Paulo, entre as ruas Brigadeiro Tobias e Prestes Maia, próximo à Estação da Luz. O edifício Prestes Maia, como é conhecido até hoje, estava abandonado há quinze anos, e ali moravam ratos, baratas, mosquitos e lixo, muito lixo. Mutirões foram responsáveis pela transformação do local, de onde saíram mais de 70 caminhões de entulho. Severino não sabia, mas ali seriam escritas as páginas mais bonitas de sua vida.

Depois do desastre do andaime, Severino achava dificuldade em conseguir outro trabalho, e a idade também chegava. Começou então, com uma carroça, a catar papelão e outros recicláveis nas ruas do Centro, Centro este onde Severino conheceu Roberta , ambulante com quem se engraçou, casou e constituiu família. Nos porões do subsolo do Prestes Maia, os dois começaram a realizar a fragmentação de papel para reciclagem, “mode sustentar a família”. Foi ali que Severino teve o tal encontro com Machado de Assis, na hora em que ele seria destruído pelas lâminas afiadas da guilhotina. O catador, que apreciava tanto as letras e a literatura, se recusou a apagá-las da obra machadiana, que valia muito mais que as poucas moedas em que o livro seria transformado. Machado foi o primeiro “sem-teto” abrigado por Severino. Muitos outros saíram dos lixos de São Paulo, achados pelo sertanejo das letras e sua esposa, que juntavam tudo no porão da reciclagem. Os 600 primeiros companheiros “sem-teto” de Severino fizeram nascer a Biblioteca Prestes Maia, como lembra, “no dia 18 de fevereiro de 2005”. O sonho de Severino, de “levar o conhecimento ao público”, saiu dos lixos para a maior ocupação vertical da América Latina, onde moram 468 famílias. A Biblioteca ajudou a criar ali uma dinâmica muito particular de comunidade, que acredita na cultura como arma de sua luta.

A cultura como arma de luta
Quem passa pela Prestes Maia, avenida que dá acesso a grandes vias como a 23 de maio e Tiradentes, avista a placa “visite a biblioteca Prestes Maia”, na porta de cor roxa que dá entrada do grande edifício. O hall do prédio, que antigamente abrigava uma grande tecelagem, imponentes paredes de mármore escoram dezenas de carrinhos de bebê e bicicletas, posto que é impossível levá-los andar acima, como os elevadores não funcionam. Os 22 andares do prédio, todos ocupados pelas famílias, tem de ser atingidos degrau a degrau. Tudo no prédio é extremamente organizado, com escalas para cuidar da portaria, da limpeza, e é claro, da biblioteca, que é de Severino por criação, mas que é para todos.

Hoje, são mais de 15 mil volumes, entre livros, enciclopédias, revistas e gibis. Interessante notar a quantidade de material escolar de que a biblioteca dispõe, o que ajuda muitas crianças e jovens, em época de escola ou de vestibular e, como não podia ser diferente, para apresentar as letras a quem ainda não as conhece. Severino conta que é capaz de passar o dia inteiro na biblioteca, organizando os novos inquilinos que não param mais de chegar. “Com a biblioteca, o Prestes Maia ficou muito conhecido. Todo dia tem doação, tem estudante, jornalista que vem conhecer”. Os usuários também são muitos e vem de perto e de longe: “Vem gente de outros bairros pra fazer trabalho de escola, gente da Luz, do Brás, vem gente da Cásper Líbero”, conta Severino, orgulhoso por atingir e beneficiar tanta gente. É fácil emprestar um livro na biblioteca circulante, bastando fazer um simples cadastro com nome, endereço, telefone e número do RG. Antes, as entradas e saídas eram registradas por Severino e seus amigos-voluntários (que se revezam na biblioteca) em uma caderneta. Hoje os empréstimos já são controlados via computador, fruto da doação de uma ong.

Ótimo contador de histórias, Severino não teve grandes dificuldades para falar com a imprensa, mas confessa que se preparou bastante para lidar com ela pela primeira vez “Estudei muito antes de dar a entrevista pra Folha. É preciso entender a importância de tudo isso para a nossa luta. Eu não tenho muita cultura, mas sei que ela é necessária”. A saga de Severino e do Prestes Maia já saiu em toda a imprensa. Tem inclusive fotolog e comunidade no Orkut. E a biblioteca já recebeu tantas visitas ilustres que nem dá pra contar nos dedos. As mais notórias foram Aziz Ab’Saber, geógrafo professor da Universidade de São Paulo (USP), e José Mindlin, bibliófilo e membro da Academia Brasileira de Letras, de 92 anos. Mindlin e Severino têm, alem do apreço pela literatura, mais algo em comum: bibliotecas particulares. A de Severino tem cerca de 4 mil títulos e fica numa prateleira improvisada de seu “apartamento” na ocupação. Já a de Mindlin conta com o maior acervo particular do Brasil.

A partir da biblioteca Severina, o Prestes Maia deixou de ser uma simples ocupação, e passou a abrigar uma vasta programação de atividades culturais, que acontece todos os sábados: são cineclubes, peças e oficinas de teatro, palestras, exposições. O subsolo do edifício virou um centro de resistência cultural. Quando ameaçados de despejo (em abril de 2007 aconteceu a 19ª tentativa) agem com intervenções e protestos artísticos, não só no prédio, como nas ruas dos arredores.

Nuvem macia, chão duro
Severino se divide entre o cuidado com a Biblioteca que fundou, que para ele “é um trabalho público”, e o sustento diário das sete bocas de sua família. A reciclagem rende pouco dinheiro, cerca de R$ 100 por mês. Ao mesmo tempo em que a história do Severino livreiro se torna conhecida aqui e acolá, a necessidade aperta. Se pudesse, ele saciaria sua fome com os livros. “Toda noite, depois da janta, minha sobremesa são 5 ou 6 páginas de um livro”, diz.

Como se já não bastasse, a ameaça de quem vive numa ocupação de não ter onde morar no dia seguinte, também pesa, é eminente. Já foram 19 ameaças de desapropriação. Em abril, o MSTC conseguiu a prorrogação, mas não há mais muito que negociar, pois o proprietário do imóvel ganhou na justiça o direito à reintegração de posse. Com ela, é incerto o destino do livreiro, suas letras e de todos os Severinos da ocupação. “A resistência será feita com livros”, discursa Severino, hoje com 57 anos. E completa “a polícia terá que passar sobre Machado de Assis, Érico Veríssimo, Euclides da Cunha, Gabriel García Márquez”.

Um eterno Severino
O Herói da Carruagem Mágica – assim foi eternizado o livreiro Severino, em curta-metragem de Phillippe Bertrand, com quinze minutos de duração. A sinopse por si só já encanta: “O curta narra a epopéia de Severino e Roberta - moradores da maior ocupação vertical da América Latina e fundadores da Biblioteca Prestes Maia -, que sonharam semear cultura ao povo e criaram o projeto de uma Biblioteca Circulante. Uma Carruagem Mágica que, com o herói e sua poetisa, muito longe voaria”. O documentário integrou uma mostra de curtas no Centro Cultural São Paulo, e participará de mostras itinerantes que chegarão a diversos bairros da periferia paulistana. A menina dos olhos de Severino pode não lhe render ganhos materiais, mas a satisfação pode ser claramente vista em seus olhos.